Ao deitar-se, Tertuliano lembrou-se da visita que Maria da Paz lhe havia feito na parte da manhã... Pensou que um telefonema antes de dormir seria atitude de cavalheiro... Não é porque a relação estava por acabar que se esqueceria do papel que tipos como ele tinham de cumprir.
Mas não foi assim que procedeu... É que seus pensamentos o conduziram novamente à figura de Daniel Santa-Clara, a “sua obsessiva preocupação dos últimos dias”.
(...)
Refletiu sobre os próximos
passos que deveria dar... Certamente não poderia aparecer no escritório da
produtora... Imaginou-se chegando ao local e perguntando pelo ator ao mesmo
tempo em que os responsáveis pela recepção achariam graça ao entenderem que o
próprio Santa-Clara estivesse pregando-lhes uma peça... Também podia acontecer
de considerarem que a atitude passava dos limites do mau gosto.
Viu-se de barba e bigode postiços numa tentativa
desesperada de evitar qualquer reconhecimento... Calculou que, não sendo
daqueles que podiam contar constantemente com a sorte, seus adereços lhe
escapariam do rosto bem no instante em que solicitasse as informações.
Considerou as situações e entendeu que uma carta seria a alternativa
mais segura... Poderia escrever à produtora, solicitar informações que desejava
sem revelar nome e endereço verdadeiros.
Pode-se dizer que essas conjecturas ocorreram-lhe de
fragmentariamente e só aos poucos foi dando certa ordem às possibilidades. A
que entendeu como viável envolvia a pobre Maria da Paz.
(...)
O Senso Comum apareceu para, mais uma vez, chamar-lhe a atenção... De modo
algum concordava com a ideia... Como é que aquilo podia ser levado a sério?
Tertuliano respondeu que além de ser a única ideia, era também a melhor.
O Senso Comum explicou que, no mínimo, era vergonhoso escrever a carta
subscrevendo nome e endereço de Maria da Paz.
O professor garantiu que a moça não se importaria... E como não? Senso
Comum quis saber, já que nada havia dito a ela.
Tertuliano explicou que tinha suas razões... Podia-se dizer o que bem
entendesse a respeito delas... “Presunção de macho” ou que mais se quisesse... Ele
mesmo tinha a consciência de que não podia ser chamado de “sedutor”... Não se
tratava de um “conquistador”. Sabia que se tratava, antes disso, de alguém que
se rende às conquistas...
O Senso Comum quis saber o
que ele diria à Maria da Paz para convencê-la a assinar uma carta solicitando
informações sobre um ator... Tertuliano explicou que não lhe diria nada
disso... Falaria apenas que o texto dizia respeito ao estudo que estava
fazendo... Aquele sobre os “sinais ideológicos”... Como o seu interlocutor
invisível sabia bem qual era o estudo, não se via obrigado a falar novamente as
mesmas coisas.
(...)
Mas será que o rapaz achava
que a moça estava totalmente à sua disposição? O Senso Comum sentenciou que ele
devia saber que não era assim... Tertuliano disse que seria apenas um favor.
Ele bem sabia que no ponto em que estavam na relação não podia garantir que a
outra aceitasse seus embustes.
O problema é que, em
sua opinião, ele mesmo não poderia assinar a carta... O Senso Comum perguntou
sobre a alternativa de usar um nome falso. De toda forma, redarguiu Tertuliano,
o destinatário teria de ser autêntico.
Na sequência, Senso Comum deu a entender que o rapaz devia acabar de vez
com aquela “história de duplicados”... O professor lamentou... Ele tinha a
consciência de que o caso era mais forte do que podia suportar.
O invisível deu a entender
que aquilo podia resultar em dramático para Tertuliano... Ele podia se lamentar
o quanto fosse, mas tinha de assumir que era o único responsável pela
situação...
O Senso Comum disse que aquele
enredo parecia anunciar uma “máquina trituradora” que se dirigia em sua direção
depois de ter sido acionada por ele mesmo.
(...)
Tertuliano não disse nada mais...
Em silêncio rumou para o telefone... Dessa maneira a conversa se
encerrou.
Colocaria sua ideia em prática... Por isso registrou o número da casa de
Maria da Paz.
Provavelmente sua chamada seria atendida pela
mãe da moça.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-por.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto