Se a mãe de Maria da Paz atendesse à chamada telefônica, Tertuliano teria de improvisar algumas palavras que não resultassem em antipatia por parte da velha...
Durante os seis meses de relacionamento, as vezes que ele se dispusera a telefonar para a namorada haviam sido bem poucas...
Era provável que a mulher nem soubesse que a filha tinha um caso... O rapaz sentia que, se ela o conhecesse, a reprovação seria inequívoca.
Enquanto não atendiam, ficou a imaginar o que diria à senhora... Era um amigo... Ela podia dizer à Maria que Máximo estava ao telefone...
(...)
Felizmente a própria Maria atendeu.
Ela se demonstrou surpresa ao afirmar que pensava que
ele não a procuraria... Tertuliano respondeu que o engano estava desfeito. A
moça se explicou dizendo que ele guardou silêncio durante boa parte do tempo em
que estiveram juntos, e isso só podia significar que o que se sucedera aos dois
não havia sido tão significativo para ele como o havia sido para ela.
O rapaz queria encurtar a análise... Disse que a significância do que
haviam vivenciado era a mesma para ambos. Maria prosseguiu problematizando a
respeito do quanto cada um valorizava a relação... Depois o namorado comentou
que não existiam “instrumentos” para submetê-los à análise.
Importava saber se ele ainda gostava dela... E foi isso o que ela
perguntou... Tertuliano respondeu afirmativamente... Maria protestou garantindo
que ele não “expressava com muito entusiasmo” seus sentimentos por ela.
Este tema prosseguiu ainda por breve tempo... Em síntese, podemos dizer
que a moça reclamava que ele apenas repetia suas palavras... De sua parte,
Tertuliano manifestava que não via nenhum problema nisso, pois se as palavras
serviam para que ela expressasse sua estima por ele, deviam servir também para
ele...
Maria referiu-se às leituras de romances e ficções... Argumentou que
poderiam se entender melhor se ele tivesse esses gêneros em seu repertório. Ele
sustentou que nem mesmo para as suas leituras obrigatórias (como aquela sobre
as civilizações mesopotâmicas) sobrava-lhe tempo.
Ela comentou que, de fato,
viu o referido livro sobre a mesa de cabeceira... Mas será que andava tão
ocupado mesmo? Ela não podia crer... Tertuliano garantiu que se ela conhecesse
sua vida não teria esse tipo de dúvida...
Maria aproveitou a deixa
para emendar que a questão se resumia a ele permitir a sua participação.
Tertuliano observou que falava de sua vida profissional... Ela avaliou que seu
problema em relação à falta de tempo podia ser explicado a partir do estudo a
que se propusera e que demandava a avaliação de tantos filmes...
(...)
Não foi para isso que
Tertuliano ligou para Maria... Ele percebeu que a conversa tomava um rumo que
não lhe interessava... Todavia notou também que havia chegado o momento para envolvê-la
na história da carta.
Não tinha como esconder que não era do tipo sentimental, que se dedica a
rememorar dos bons momentos com a pessoa amada... No entanto sabia que teria de
falar com cuidado para que a outra não ficasse a pensar que sua única intenção
ao telefonar-lhe era a de tirar proveito e obter sua colaboração.
(...)
Ele resolveu dizer que o
negócio com os filmes não era bem como ela estava pensando... E como não? Maria
argumentou que estranhara muito tê-lo visto todo desalinhado e rodeado de fitas
cassetes... Conhecia apenas o Tertuliano ajuizado!
Foi a deixa que ele estava precisando...
Disse que havia sido pego em casa num “momento à vontade”... Mas “já que ela
estava tocando no assunto”, podia falar-lhe a respeito de uma ideia que teve
para facilitar e apressar sua pesquisa.
Maria antecipou-se a dizer que não gostaria de
assistir aos filmes... Isso seria um castigo!
Tertuliano a tranquilizou... Revelou que uma carta à produtora “pedindo-lhes
um conjunto de dados concretos, relacionados, em especial, com a rede de
distribuição, a localização das salas de exibição e o número de espectadores
por filme” o ajudaria a tirar conclusões importantes.
Maria estranhou em quê tudo aquilo ajudaria com os “sinais ideológicos”...
Ele respondeu que ainda precisava descobrir, no entanto havia outro problema
que era a inconveniência de ele mesmo redigir a carta.
Mas isso não era problema! Foi o que Maria garantiu... Ele poderia ir
pessoalmente à produtora... Certamente “ficariam lisonjeados” por verem seus
filmes despertar tanto interesse em um professor de História!
Tertuliano explicou que não pretendia misturar sua “qualificação científica
e profissional” com uma temática que dizia respeito a especialidades outras.
É claro que essa era uma desculpa esfarrapada que não
explicava os fundamentos de seus temores.
Como aquele problema seria
resolvido? Maria quis saber!
Ele respondeu que ela poderia escrever a carta.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_24.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto