O dia seguinte é sempre mais um de rotina de trabalho...
Helena era funcionária numa agência de turismo... Enfrentava o mesmo trânsito que penaliza os demais mortais que têm de atravessar a cidade para chegar ao emprego.
Antônio Claro podia demorar-se um pouco mais para se levantar porque não teria filmagens... Aliás, o último projeto da produtora estava em fase de finalização.
Ao se retirar silenciosamente da cama, a mulher pôde constatar com tranquilidade o quanto a noite havia sido como as outras... A claridade da manhã anunciava a normalidade das coisas. Quanta imaginação!
Brincou com os próprios devaneios, que a levaram a imaginar fantasias e fantasmas... Olhou para o sofá onde gostava de descansar e sorriu ao cravar que ali devia ser o local escolhido pelo fantasma.
(...)
Talvez fosse melhor dizer que com essas coisas não se brincam...
Só mesmo Helena poderia nos contar a razão pela qual
se sentou por tempo considerável no sofá, atrasando-se para o trabalho... Só
ela teria condições de explicar por que abriu a lista de telefones para copiar
o número do Tertuliano Máximo Afonso.
Antes de se retirar,
dirigiu-se ao marido para beijar-lhe e desejar-lhe um “bom dia”.
Antônio despertou... Preocupou-se com o horário da esposa e questionou
sobre o que fariam a respeito de Tertuliano e sua história maluca... Helena quis
saber qual era a intenção do esposo, que revelou que estivera a pensar sobre a
possibilidade de encontrar-se com o tipo... Mas após a noite de sono já não
tinha certeza se era isso o que pretendia.
Helena lamentou... Disse que era uma questão de abrir ou fechar a porta
da casa ao estranho. Sentenciou que a vida do casal já não seria a mesma. Para
Antônio Claro a situação estava em suas mãos... Mas a mulher não pensava da
mesma maneira e disse que o “aparecimento do homem” independia de suas
vontades... E era como se o tipo estivesse do lado de fora do apartamento só
esperando a oportunidade para invadir a privacidade deles.
Antônio entendeu que a esposa estava muito pessimista... Disse que um
encontro resolveria tudo... Ou eram mesmo idênticos ou não... No fim das contas
a curiosidade seria resolvida e se afastariam para sempre.
A mulher não dissimulou seu pessimismo... Garantiu que não era qualquer
encontro que solucionaria a questão... O tipo permaneceria à espera, aguardando
que fosse convidado a entrar. Antônio argumentou que bastaria esquecerem...
Helena falou que aquilo era uma possibilidade, mas não uma certeza.
Essa conversa não podia
prosseguir porque o trabalho a esperava... Antes de sair, Helena perguntou se
Antônio telefonaria para o tipo naquele mesmo dia. Ele ajeitou-se na cama e
disse que aguardaria uns dias... Talvez a indiferença fizesse com que o episódio
esmorecesse até tornar-se completamente nulo.
(...)
Depois que Helena se
retirou, Antônio Claro levantou-se... É evidente que, se a intromissão do
Tertuliano em nada tivesse alterado sua vida, teria se acomodado novamente para
mais um período de sono...
Certificou que o dia
seria de calor... Preparou o desjejum e pensou nas curtas frases de Helena. E
em síntese elas queriam dizer que ambos teriam o tipo inconveniente
permanentemente em suas cabeças.
Depois pensou no que ele mesmo afirmara... Duvidou da eficácia da
estratégia de aguardar para que o tempo sepultasse o episódio... Talvez um
encontro secreto ou mesmo um telefonema agressivo fossem mais eficazes.
Antônio reconheceu que
talvez não tivesse retórica a altura da necessidade que a ocasião exigia...
Pensou nas palavras de Helena, sobre enxergar o outro cada vez que o olhasse, e
entendeu um pouco melhor o quanto o tipo fizera mal às suas vidas.
O ator sentiu-se moralmente atingido... Enxergou
um “elemento adulterino” nas palavras da esposa. Irritou-se e começou a pensar
numa ideia, algo revanchista.
Algo maquiavélica? O próprio Saramago salienta
que a ideia de seu personagem não pode ser classificada como ”à altura de
Maquiavel”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/10/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_23.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto