Antes que Helena chegasse do trabalho, Antônio experimentou os disfarces... Viu-se no espelho e poderia afirmar a si mesmo “este sou eu”... Também poderia perguntar “este quem é?”.
Mas o exame da aparência teve pouca duração. É que Helena vinha se comportando de modo cada vez mais estranho... Tornou-se comum chegar do trabalho e percorrer a casa silenciosamente e estranhando a mobília e os cantos do lar.
Pobre Helena... O esposo não sabe dizer palavras que lhe possam trazer tranquilidade e paz interior...
Talvez o tipo não tivesse mesmo a menor condição de proporciona-lhe isso.
Naquele momento ele podia ser visto a apressar-se a guardar os objetos temendo ser flagrado pela mulher.
(...)
Na manhã seguinte, logo que Helena saiu para trabalhar, Antônio
telefonou para o número que conseguiu na lista telefônica... A mãe de Maria
atendeu... O ator permaneceu em silêncio conforme havia estabelecido.
As poucas palavras que a senhora proferiu foram
suficientes para que ele concluísse que a mulher só podia se tratar da mãe,
avó, ou alguma tia solteirona de Maria.
Não havia como saber se a casa era habitada por algum homem... O pai, um
irmão... Mas isso não ocupou o pensamento do Antônio Claro... Antes disso, raciocinou
sobre como seria reconhecido no caso de dar de frente com a moça... Amigo ou
amante? Certamente preferiria ser reconhecido como o amante...
Neste ponto do texto temos de concluir que aos poucos Antônio Claro chegou
a certas conclusões a respeito do seu intento... Pode ser que ele não soubesse
desde o princípio, mas o que o motivava tinha a ver com “intenções malévolas”.
Quando recebeu a caixa com a barba postiça podia ter dito à Helena que
atirasse o adereço ao lixo, ou ainda que ligasse à polícia para colocar um fim
à história, fosse qual fosse a consequência.
(...)
Mas como sabemos não foi assim... Faltou ao tipo seguir o que qualquer
um que se paute pelo senso comum faria... Vemos que sua obsessão estava em
conhecer a Maria da Paz. E as intenções que levava na cabeça não eram nada boas.
Inicialmente não poderia se
instalar em frente ao prédio e perguntar a todas que aparecessem se se tratavam
da Maria da Paz... E nem faria a loucura de tentar um “golpe de sorte” após dar
umas voltas no quarteirão e dizer à primeira que surgisse que ela só poderia
ser a da Paz...
Sugerir um café, tirar a
barba postiça? Nada disso! Logicamente a mulher se espantaria... Mas isso
estava mesmo fora de cogitação... Antônio Claro sabia que não podia antecipar
situações. E isso quer dizer que não tinha a menor intenção de tratar com ela sobre
o estranho caso de “cópias idênticas” do qual ele o Tertuliano eram partes.
(...)
Ao ator interessava,
sobretudo, saber se a moça em questão valia a pena... O que faria se, ao avistá-la,
notasse uma figura sem componentes atrativos?
Saramago adianta que este não é o caso da Maria da Paz... Mas o ator
teria de resolver como chegaria a reconhecê-la... Principalmente porque não
poderia dar motivos de suspeitas aos vizinhos...
Antônio Claro pensou em
todas essas coisas... Pensou também em Helena... A Maria devia ser mais ou
menos como ela... Um tipo de trabalho e horários fixos... Mas se esforçou para
incorporar a ideia de que a esposa nada tinha a ver com aquilo... Ele manteria
sua fidelidade de marido... O negócio com a Maria (nem dava para saber o que
ocorreria!) se relacionava à sua sede de vingança... Estava indo à desforra!
Seu sentimento era de ódio... Fundamentava-se essencialmente na trágica
fatalidade de ter um tipo que em tudo era a sua cópia... Um tipo que ousara
desafiá-lo com a caixa contendo a barba.
(...)
Então... O que se passava pela cabeça de Antônio
Claro?
Evidentemente, sem o menor bom-senso, o rapaz estava decidido a se
aproveitar da pobre Maria da Paz... Fazendo-se passar por Tertuliano, a levaria
para a cama...
O tipo estava entendendo que, desse modo, se
vingaria à altura da ofensa que fora dirigida à sua Helena... Além disso, dessa
maneira, cumpria-se o desagravo ao ataque da silenciosa caixa com a barba
postiça.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/11/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_15.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto