As paredes do quarto de Teodorico tornaram-se repletas de imagens de santos... A tia e os frequentadores da casa passaram a entender que o seu cotidiano passara a ser de orações fervorosas também em honra de todos os demais, que habitam o céu.
A “vida dos santos” tornou-se um de seus assuntos favoritos... Até mesmo a beata Dona Patrocínio aprendeu com ele alguns que não conhecia (“São Telésforo, Santa Secundina, o beato Antônio Estroncônio, Santa Restituta, Santa Umbelina, São Hipácio...”). E por falar em devoção, o rapaz fez-se assíduo frequentador de matinas, vésperas e “adorações ao Sagrado Coração de Jesus”.
Adorações ao Santíssimo, novenas e missas tornaram-se compromissos imperdíveis. Às sete da manhã participava da missa da igreja de Santana, às nove na igreja de São José e ao meio-dia na Oliveirinha, onde havia a “ermida da Oliveira”... No caminho entre um e outro templo arranjava um tempinho para um cigarro... O percurso pelos locais de devoção prosseguia à tarde com o culto ao Santíssimo na igreja de Santa Engrácia, terço no convento de Santa Joana, depois bênçãos, novenas e visitas a outras igrejas...
(...)
À noite, Teodorico chegava cansado à casa de Adélia.
Não era para menos!
Não poucas vezes acontecia de o rapaz atirar-se ao
sofá, onde não resistia e começava a cochilar. A moça se aproximava e
gritava-lhe ao ouvido para que despertasse... Chamava-o “morcão”...Conforme os meses se passaram, a rotina de peregrinação pelas igrejas de Lisboa pesou demais. Adélia via que seu amante comparecia cada vez mais extenuado. Ele não pôde deixar de notar que “pelas alegres vésperas de Santo Antônio” ela o despertou tratando-o por “carraça”.
Nem o esgotamento o impediu de perceber que a moça se tornara mais pensativa e um tanto distraída... Várias foram outras ocasiões em que ele notou que ela não dava-lhe atenção às palavras... Isso o deixou preocupado.
As despedidas ainda eram marcadas por cuidados da moça com o seu paletó. Ela ainda o acompanhava até a escada... Mas foi repentinamente que deixou de dar-lhe a “beijoca na orelha” que tanto o agradava.
(...)
Ocorreram mudanças no
relacionamento...
Aconteceu que Teodorico
notou que a amada já não o esperava com a disposição do começo. Ela o recebia
despenteada e “por vestir”... Seu rosto começou a apresentar olheiras e seu
aspecto tornou-se cansado.
O cansaço da moça era
tanto que ela é que passou a deitar-se no sofá... De olhos fechados, deixava
escapar lamentos e fragmentos de “cantigas de estranha saudade”. Ao rapaz não restava
outra coisa a fazer senão ajoelhar-se perto dela, ansioso pelo momento do
abraço.
Mas os bons momentos de troca de carinho já não se repetiam... Então
Adélia despertava e o repreendia... Chamava-o “carraça!” Será que ele não
notava que a importunava? E logo dava uma desculpa qualquer... Dizia que sentia
azia ou que lhe doíam as laterais do corpo... Depois o dispensava.
Apaixonado, Teodorico seguia para o casarão em Santana aos prantos. Em
seus pensamentos pairava a dúvida. Ela ainda o chamaria “morcão”?
(...)
Certa noite de julho, Teodorico resolveu chegar
mais cedo à casa de Adélia. A portinha estava aberta e o candeeiro iluminava a
escada... A amada estava conversando com um tipo de “bigodinho louro”. Ela
vestia saia branca e ao notá-lo tornou-se pálida. O tipo também pareceu se
encolher em sua capa.
Depois de algum
tempo, a moça disse que o rapaz era seu sobrinho Adelino, irmão do xará
Teodoriquinho. Filhos de sua irmã Ricardina.
Teodorico tirou respeitosamente o chapéu e ofereceu a mão para um
cumprimento ao Adelino. Perguntou pela mãe e pelo irmão e salientou que estava
encantado por conhecê-lo.
O Raposo achou mesmo que sua amada tivesse gostado do encontro, pois
naquela mesma noite voltou a chamá-lo “morcão” e aplicou-lhe beijocas na
orelha.
(...)
E
assim foi pelo resto da semana... Enfim Teodorico experimentou novamente a
felicidade.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_30.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto