domingo, 24 de setembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – uma encenação convincente; profano e “bon vivant” longe dos olhos da Titi; dos hábitos que demonstram a mais profunda conversão

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_22.html antes de ler esta postagem:

Pobre Teodorico...
Para herdar a fortuna que pertencera ao comendador Godinho devia chegar à condição de o confundirem com as imagens que a boa senhora, sua tia, tinha por sagradas!
(...)
O rapaz decidiu colocar-se na disputa de uma vez por todas.
Se dependesse dele, aquela imensa fortuna não seria transferida para a Igreja, que já possuía muitas catedrais exuberantes, além das arrecadações em ouro a que muitos Estados se submeteram ao longo do tempo. E isso sem contar os muitos tesouros que todos sabiam que ela possuía!
No limite, era ele contra o crucificado. E, no final das contas, Dona Maria do Patrocínio é que definiria o “vencedor da contenda”...
(...)
Quando chegou ao casarão, Teodorico percebeu que a tia ainda estava no oratório. Então considerou que o momento era propício para iniciar a sua ofensiva. Dirigiu-se ao quarto, tirou os sapatos e a casaca, desgrenhou os cabelos e, de joelhos e a gemer, seguiu pelo corredor.
Dona Patrocínio estranhou e caminhou até ele, que havia chegado à porta do oratório. A cena era das mais pitorescas, já que o moço gemia e clamava por Jesus, seu Senhor e Salvador...
Ela quis saber o que estava acontecendo... O sobrinho atirou-se ao assoalho e disse que depois do teatro estivera com o doutor Margaride com quem conversou e tomou chá... Explicou ainda que , quando passava pela Rua Nova-da-Palma começou a pensar na morte e no quanto necessitava de Jesus, que padeceu por todos nós...
Com toda extravagância que podia encenar, Teodorico dizia que só Ele salvaria a sua alma. Disse ainda que esteve em prantos e que tinha necessidade de se recolher ao oratório, pois isso o aliviaria.
Dona Patrocínio ficou impressionada com o que viu e ouviu. Sem perder tempo, acendeu as velas e ajeitou a imagem de  São José para que o sobrinho tivesse seu momento de prece...
Teodorico entrou no local de oração rastejando. Em silêncio, Dona Patrocínio retirou-se e fechou a porta... Ao notar-se sozinho no sagrado recinto, Teodorico acomodou-se na almofada que a tia costumava usar e continuou a suspirar de modo que todo o casarão pudesse ouvir.
(...)
Mas aquilo era a mais pura enganação... Os pensamentos de Teodorico pertenciam unicamente à viscondessa de Souto Santos, ou de Vilar-o-Velho, que vira no teatro São Carlos.
Não lhe saía da cabeça seus “ombros maduros e suculentos”... O que mais desejava era beijá-la loucamente. E sua depravação e desrespeito à religião não tinha mesmo limites... Tanto é que imaginou-a ali mesmo, “aos pés de ouro de Jesus”.

(...)

Desde então, a devoção de Teodorico passou a ser vista como a mais radical.
Às sextas-feiras comia-se bacalhau no casarão. Isso era uma espécie de sacrifício, um jejum, a que todos da casa deviam se submeter.
Pois o rapaz passou a rejeitar a sua porção do peixe. Todos o viam alimentar-se apenas de uma “côdea de pão” e um mísero copo d’água.
Todavia quando a noite chegava, Teodorico empanturrava-se de bacalhau bem temperado e acebolado, “com bifes à inglesa”, na casa de Adélia.
Também no seu modo de vestir-se, Teodorico mostrou-se mais modesto.... Além do surrado paletó, seu guarda-roupa abrigava a capa roxa “de irmão do Senhor dos Passos” e o hábito acinzentado da Ordem Terceira de São Francisco.
Evidentemente essas peças ficavam à mostra escondiam os “panos ingleses e profanos” que só eram usados longe dos olhos da tia. Já sobre a cômoda de seu quarto, deixou bem à vista uma “litografia colorida de Nossa Senhora do Patrocínio” e, diante dela, uma lamparina que ardia permanentemente.
A Titi ficou encantada ao notar o esmero do sobrinho com as coisas da religião.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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