O casarão, seu aspecto de capela, santos e odores eram lamentáveis para o Teodorico... Assim, era com alívio que ele retomava o caminho do internato na companhia de Vicência.
A criada de Dona Maria do Patrocínio o acompanhava e falava a respeito de si e da patroa... Ela fora trazida àquele casarão seis anos antes. Fora retirada da “Misericórdia” (que, entre outras obras, acolhia órfãos) e desde então se dedicava aos cuidados domésticos e tudo o mais que lhe fosse solicitado.
A respeito de Dona Maria, dizia que ela sofria do fígado e que era uma mulher endinheirada. A bolsa de seda verde estava sempre cheia de moedas de ouro... O finado Comendador Godinho deixara-lhe duzentos contos só em propriedades, papéis e mais a quinta do Mosteiro, que ficava em Viana... E isso sem contar as pratas e louças trazidas da Índia!
Teodorico sabia calcular o quanto a irmã de sua mãe estava rica. Não tivera a mesma sorte, pois Dona Rosa faleceu logo que ele nasceu... Podia simplesmente ser bom e agradar à tia.
(...)
Sempre que chegavam à porta
do colégio, Vicência se despedia com um “adeus, amorzinho” e dava-lhe um beijo...
Não poucas vezes o menino se recolhia à sua cama e pensava na criada, em seus
braços brancos e gordos... Abraçado ao travesseiro imaginava-se apaixonado por
ela.
Mas isso logo passou...
Tudo passa, até o amor pela Vicência! A estudantada do internato tinha tantos
afazeres que sequer notava tantas mudanças ao redor.
O Teodorico que escreve as
memórias lembrou-se que certa vez brigou com outro interno maior do que ele...
O tipo o havia insultado ao chamá-lo de lambisgoia. Na área das latrinas os
dois partiram para a troca de socos e pontapés. Teodorico saiu-se melhor, pois
aplicou uma surra que deixou ensanguentado o seu desafeto. Esse episódio
tornou-o mais respeitado pelos demais.
Tornou-se fumante e interessado
por esgrima...
Certo dia, Crispim deixou o
colégio.
(...)
O tempo passou... E
com ele os vários natais...
Essas ocasiões também eram de repetições... O braseiro no refeitório; o
casacão forrado com grossa lã e de gola de pele especial (de astracã)... As
andorinhas ressurgiam nos beirais dos telhados... Os cravos passavam a enfeitar
o valioso oratório e “perfumar os pés de ouro de Jesus” de Dona Maria do
Patrocínio... De Torres vinham uvas da quinta do padre Casimiro... Os banhos de
mar.
Teodorico aplicou-se nos estudos de retórica... Certo dia o procurador
explicou-lhe que os tempos de internato nos Isidoros tinham ficado para trás,
pois ele partiria para a casa do doutor Roxo, em Coimbra. Lá se prepararia para
o curso superior.
Preparado o enxoval, antes da mudança, a tia
entregou-lhe um papel onde se lia a oração a São Luiz Gonzaga, o padroeiro dos
jovens estudantes... Ela orientou o sobrinho a orar diariamente e pedir ao
santo que lhe conservasse a frescura da castidade no corpo e o temor a Deus.
(...)
O padre Casimiro o levou
para Coimbra.
O cotidiano junto ao padre Roxo foi dos mais terríveis. O religioso
levava uma vida austera e não admitia liberalidades ou ociosidade. Pode-se
dizer que foi um tempo de claustro para o rapaz.
Ele mesmo confessou que a
morte do velho devido a uma terrível infecção trouxe-lhe alívio. Estava no
primeiro ano de Direito quando isso ocorreu e mudou-se para a “hospedaria das
Pimentas”... Segundo seus apontamentos, foi então que tiveram início os divertimentos
“sem moderação”, as “independências e as fortes delícias da vida”.
Teodorico afastou-se
completamente de tudo o que tivesse a ver com igreja... Jamais voltou a ler a
oração a São Luiz Gonzaga ou dobrou joelhos diante de imagens que trouxessem
“auréolas na nuca”.
A vida tornou-se uma festa contínua regada a bebida, arruaças e muitos
amores... A noite era o seu momento predileto e as vadiações “no Terreiro da
Erva” (em Coimbra) sempre lhe rendiam aventuras.
A
barba surgiu-lhe “basta e negra”... Não demorou e passou a ser conhecido pela
alcunha de “Raposão”, que ele mesmo aprovava.
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto