sábado, 30 de setembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – rumo à casa de Adélia no meio da madrugada deserta; troca de insultos e rompimento; recolhimento, dias tristes e “visões profanas” no oratório da Titi

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_54.html antes de ler esta postagem:

Teodorico perambulou durante aquela noite...
A cidade era só deserto e silêncio. Mesmo assim duas figuras o perturbavam... Elas flutuavam e os vultos transparentes representavam Adélia e o amante... Para o Raposo os dois se beijavam loucamente e às vezes viravam-se na sua direção para insultá-lo e chamá-lo de carola.
À uma da madrugada chegou ao Rossio... Posicionou-se indeciso sob a proteção de uma árvore. Ali fumou um cigarro até encher-se de coragem e rumar para a casa da traidora.
Lentamente aproximou-se e pôde notar que no interior da residência havia movimentação. Estava para abrir o ferrolho quando mais uma vez sentiu-se perturbado. Bem podia ser que a criada Mariana quisesse se vingar de sua patroa por algum motivo que ele não sabia... Ainda na véspera Adélia o chamara “riquinho”... Será que Mariana dissera-lhe a verdade?
O rapaz pensou que mesmo sendo verdade, talvez fosse interessante tolerar o caso de sua amante com o tipo... Ele teria seus momentos de exclusividade e isso deveria bastar-lhe... Mas logo que imaginou o Adelino recebendo as beijocas de Adélia na orelha, quis despejar contra ela toda a sua fúria e lhe desferir socos ali mesmo na escada, local de tantas doces despedidas.
Esses pensamentos o levaram a violentas batidas na porta. Logo a vidraça abriu e Adélia surgiu em camisa e com os cabelos soltos... Ela gritou perguntando quem podia ser o bruto que chegava àquela hora. Ele se identificou e no mesmo instante a luz do candeeiro se apagou.
Por um instante o silêncio tomou conta de todo ambiente... Teodorico pensou nos piores cenários sem descartar um enfrentamento físico, pois tinha mesmo vontade de arrebentá-la. Novamente pôde vê-la... Da varanda ela gritou que não podia abrir-lhe a porta porque jantara muito tarde e estava com sono.
Teodorico insistiu para que ela abrisse e ameaçou nunca mais voltar. Adélia mandou-o “à fava”... Por que haveria de se incomodar com quem lhe atrapalhava o sossego? E emendou que levasse “recados à tia”.
Obviamente ofendido, Teodorico arremessou uma pedra na sua direção e vociferou que ela podia ficar, pois não passava de uma bêbada. Na sequência desceu a rua tentando manter a dignidade. Todavia não demorou para perceber que tinha o coração magoado... A tristeza tomou conta de seu ser.


(...)

A tia Patrocínio notou sua melancolia.
A desculpa que deu para manter-se trancado por longas horas no quarto foi a de que estava escrevendo artigos para o Almanaque da Imaculada Conceição de 1878.
O rapaz ficava a vagar de um lado para outro... Quando parava de repisar o assoalho, mirava-se no espelho e tocava a parte da orelha onde Adélia costumava beijá-lo. No mesmo instante recordava-se do modo agressivo como ela o tratou naquela madrugada... Desde a vidraça o mandara “à fava”! Restava-lhe esmurrar o travesseiro imaginando golpear o peito do Adelino.
Ao entardecer, Teodorico retirava-se para uma caminhada saudável... Todas as janelas abertas que via pelo trajeto o faziam se lembrar dos momentos mais íntimos com Adélia. As peças femininas expostas nas lojas de roupas o levavam a pensar no quanto o corpo dela era perfeito. Até mesmo o sorvete de morango feito no Martinho trazia-lhe lembranças da paixão que vivenciara.
(...)
Depois do chá da noite, Teodorico recolhia-se ao oratório... Algum desavisado poderia pensar que ele buscasse conforto espiritual... Apesar de saber que tinha de continuar a mostrar-se devoto para garantir pelo menos parte da herança da tia Patrocínio, em seu íntimo desprezava a religião, suas imagens, paramentos, livros de orações e demais acessórios.
Ali no oratório permanecia de olhos fixos no Jesus de ouro do crucifixo de madeira escura... A visão se embaçava e em vez da imagem magra de Nosso Senhor, o tipo passava a enxergar o belo corpo rechonchudo de sua Adélia. Nada de coroa de espinhos! Cabelos soltos, negros e provocantes... A figura que se formava na sua imaginação era das mais profanas: Adélia “nua e vitoriosa”, com os braços abertos para ele.
De modo algum o Teodorico entendia o episódio como tentação demoníaca... Achava que se tratava de uma graça concedida pelo Senhor. Suas “queixas de amor” se misturavam estranhamente aos textos das orações.
Ele pensou que de alguma forma os santos pudessem lhe conceder algo. Não custava dirigir-lhes preces sinceras a respeito do amor interrompido.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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