domingo, 10 de setembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – o anúncio com pedido de esmola; tia Patrocínio era mesmo rigorosa com os que viviam no pecado; Teodorico curva-se diante de Titi; queimando provas da malandragem em Coimbra

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_10.html antes de ler esta postagem:

Xavier explicou ao primo que assinaria “Xavier Godinho, primo do rico Comendador G. Godinho” no anúncio. No mínimo, aquilo deixaria a tia Patrocínio escandalizada... Ela permitiria que um Godinho mendigasse publicamente? Mais uma vez o rapaz apostou na influência do Teodorico, que poderia torná-la mais sensível.
Foi então que ele pediu que, assim que a tia lesse o anúncio, o primo lhe contasse tudo o que havia visto no casebre... Deveria falar-lhe sobre a miséria e que não concordava com a situação de abandono vivida por um Godinho. Era lamentável saber que ele só havia se alimentado naquele dia graças ao caldo aguado trazido pela Lolita.
Mais uma vez Teodorico retirou-se garantindo que intercederia por ele junto à tia Patrocínio... Evidentemente o Xavier mostrou-se agradecido e não se esqueceu de pedir-lhe que deixasse uns trocados com a Cármen, caso tivesse algum... No mesmo instante ele passou para o próprio Xavier o que tinha nos bolsos.
(...)
No caminho para o casarão, Teodorico alimentava a certeza de que dessa vez intercederia pelo desafortunado primo... Falaria “em nome de Jesus”, e também em nome das crianças que viviam com o Xavier.
Mas aconteceu que no outro dia, após o almoço, ele viu a tia abrir o jornal... A mulher tinha o palito à boca e, pelo visto, encontrou o anúncio do Xavier. Ela não disse nada, mas ficou por um bom tempo a olhar diretamente para “o canto da terceira página”.
Aquele era o momento certo para o Teodorico disparar tudo o que sabia... Em seu pensamento viu o olhar do Xavier, as expressões tristes da Cármen e as mãozinhas das crianças a pedirem o pão amanhecido. Era por eles que devia começar a falar colocando emoção em cada palavra...
No momento mesmo em que decidiu começar a falar, a tia Patrocínio acomodou-se em sua cadeira e deixou escapar um sorriso de irritação... Na sequência, a mulher proferiu um “que aguente!”
E como se tivesse de justificar a sua falta de sensibilidade em relação ao parente desgraçado, emendou que o que se sucedia a ele era resultado de seu “destemor de Deus”... Quem mandou se meter com bêbados? Desperdiçou a herança em relaxações! Correu “atrás de saias”!
A beata finalizou sua sentença dizendo que o outro não tinha o perdão de Deus... E se era assim, também ela não o perdoava... Não havia razão para enternecimentos! O moço tinha mesmo de padecer... Jesus também padeceu!
(...)
Teodorico ouviu as palavras da tia e estremeceu.
No mesmo instante desistiu do Xavier... Em vez de interceder por ele, o Raposo decidiu corroborar os pensamentos de sua protetora e disse com ares piedosos que “ainda nós não padecemos bastante”.
Jesus sofreu por nossos pecados e o que temos de fazer é levarmos uma vida austera e de devoção... Foi isso o que Teodorico quis dizer! Ele finalizou com um “a Titi tem razão”.
(...)
É claro que ela gostou do que ouviu, pois logo levantou-se dando “graças ao Senhor”.
Teodorico também se retirou ao seu quarto... Trancou-se e ficou a pensar nas palavras ameaçadoras da tia Patrocínio que garantiam que “os homens acabam quando se metem com saias e relaxações”...
Evidentemente pensou nas próprias aventuras no Terreiro da Erva, em Coimbra. No seu baú de viagem estavam as provas de suas malandragens... Uma delas era a fotografia de uma rapariga de nome “Teresa dos Quinze”, uma carta e uma fita de seda da mesma... No papel, a beldade o tratava por “único afeto da sua alma” e ainda pedia-lhe dezoito tostões...
Por receio de que a tia encontrasse esses objetos de seus pecados, Teodorico os enfiara num forro de colete e os costurou.
Mas naquele momento sua insegurança era desmedida... A tia tinha a chave do baú! É por isso que ele decidiu retirar o colete com todo o cuidado para descosturar o forro. Pegou a fotografia, a fita perfumada e a carta de Teresa para queimar na pedra da varanda.
Durante a semana que se seguiu, Teodorico não quis nem saber de retornar à Rua da Fé.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas