terça-feira, 31 de outubro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – guarda maometana vigia a visitação dos romeiros; cristãos de todas as paragens, diversidade e intolerância; reconhecendo a lápide que vedou o Sepulcro; o concorrido mausoléu de mármore; procurando Ruby

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_77.html antes de ler esta postagem:

Depois de certo empurra-empurra, Teodorico conseguiu entrar no santuário onde os cristãos veneram o Sepulcro de Cristo.
O ambiente era dos mais concorridos... As pessoas se esbarravam, todavia carregavam suas fisionomias compenetradas.
(...)
O mais surpreendente para o português foi o aroma de tabaco sírio que se espalhava pela atmosfera logo à entrada... Ele observou um estrado e, sobre este, um divã no qual três tipos barbudos estavam acomodados... Eram turcos e fumavam seus cachimbos de cerejeira.
Suas armas estavam nas paredes... Via-se que o chão era de uma imundície medonha, pois estava marcado pelo escuro escarro dos três... Diante deles havia um serviçal pronto a servir-lhes café.
Voltando-se ao guia Pote, Teodorico sugeriu que os católicos tinham organizado uma “loja de bebidas e aguardentes” bem à porta da igreja do Sepulcro para que os romeiros se sentissem mais confortáveis... Disse isso e foi emendando que gostaria de tomar um café.
Pote explicou que aqueles tipos eram soldados muçulmanos que policiavam os altares. Estavam ali para impedir que fanatismos e superstições manifestadas por cristãos de diferentes paragens  e heranças se exacerbassem uns contra os outros...
Teodorico compreendeu que normalmente os padres de culto latino sentiam-se incomodados pelo som de tambores que alguns grupos traziam... Os ortodoxos gregos traziam uma cruz de quatro braços que chamava a atenção dos ocidentais... Havia ainda os de “manifestações ferozes”... Muitas vezes a intolerância marcava o encontro ocasional dos vários romeiros... Abissínios e armênios também não eram compreendidos pelos europeus. E isso sem falar nos nestorianos da Caldeia, georgianos do Mar Cáspio, maronitas do Líbano...
Pelo visto, aquela “guarda maometana” era mesmo necessária. Teodorico pensou nisso e na sorte que tinham por poderem fazer seu serviço enquanto pitavam do tabaco sírio e tomavam café.
(...)
Teodorico registrou que se depararam com uma lápide quadrada...
Via-se que ela se destacava em relação às lajes escurecidas. A lápide brilhava! Parecia polida...
Pote chamou-lhe a atenção dizendo que aquele pedaço de rocha era beijado pelos romeiros, que entendiam que se tratava da rocha que vedou o Santo Sepulcro “no jardim de José de Arimateia”.
O rapaz compreendeu a informação. Aquele pedaço de rocha era “santo”... Então perguntou a Topsius se devia beijar a relíquia... O alemão respondeu que ele tinha de proceder como os demais fiéis e seguir “beijando sempre” a tudo a que eles dispensavam especial veneração.
O que teria a perder? Além do mais aquele procedimento certamente agradaria à tia Patrocínio. E olha que foi Topsius quem fez essa afirmação!
Teodorico achou melhor não beijar a lápide... Sentiu-se enojado... O brilho e a polidez da rocha só podiam ser resultado dos incontáveis contatos labiais por séculos e séculos.
(...)
Seguiram até uma cúpula repleta de fumaça proveniente de um turíbulo...
As colunas sustentavam lâmpadas de bronze que davam um aspecto fúnebre ao ambiente. No centro estava “um mausoléu de mármore” coberto com “um velho pano de damasco” bordado a ouro...
Tocheiros iluminavam o caminho até a porta estreita. Um trapo da cor de sangue a fechava.
Um sacerdote armênio, todo de negro e com capuz que lhe escondia o rosto, cuidava de incensar.
Mais uma vez Pote chamou a atenção do Raposo... Estavam diante do túmulo de Nosso Senhor.
(...)
Podemos imaginar o quanto o cristão é tomado de emoção ao se perceber diante de tão sagrado monumento... O próprio Teodorico talvez se sentisse tocado pela ocasião... Talvez pensasse em refletir sobre sua pobre alma, ou mesmo sobre a tia de ética carola, toda piedosa e temerosa às coisas da religião.
Mas foi como um cão pastor que procurou passar pelo aglomerado de religiosos e romeiros... Afinal sua única intenção ali era a de descobrir “um rosto gordinho e sardento e uma gorra com penas de gaivota!”
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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