Depois de redigir a carta, Teodorico dirigiu-se ao tabique e encostou o ouvido na intenção de captar algo do quarto da Cibele...
Nada ouviu... Certamente a moça dormia sem saber que do outro lado havia alguém que só tinha olhos para ela. Isso o irritou a tal ponto que sua reação imediata foi a de cerrar o punho e proferir um “besta”, referindo-se à desconhecida.
Na sequência, o rapaz foi ao guarda-roupa, de onde tirou o embrulhinho de papel pardo com o camisão de Mary. Beijou a relíquia da amada que vivia em Alexandria.
(...)
Na
manhã seguinte, Topsius liderou a visita ao Jordão...
Percorreram as
colinas de Judá... Teodorico enfastiou-se com a monotonia do caminho. As
colinas se sucediam arredondadas e secas... O solo esbranquiçado queimava e
tornava a peregrinação ainda mais desgastante. Tudo lhe parecia triste como um
jazigo. Raríssimos animais davam o ar da graça... Apenas alguns lagartos e nada
mais! Em elevada altitude via-se um abutre que parecia acompanhá-los.
(...)
Os
expedicionários acamparam quando a tarde caiu em Jericó. Armaram as tendas e só
então puderam se recompor bebendo limonada sobre um macio tapete... Nas
proximidades havia um riacho ladeado por arvoredos e flores que produziam
agradável perfume... O ambiente era mais do que satisfatório e compensou a
árdua travessia. A variedade de flores surpreendia (algumas pareciam giestas,
outras eram lírios brancos, além das muitas ervas de avantajado porte).
Cegonhas perambulavam silenciosamente de um lado para outro.
Na direção de Judá, a
vista que se tinha era a do Monte da Quarentena* (torvo, fusco na sua tristeza
de eterna penitência).
*
Há uns seis quilômetros de Jericó; local conhecido pelo retiro espiritual
de Jesus, que teria durado quarenta dias; de acordo com o trecho bíblico
(capítulos 3 e 4 do Evangelho de Lucas), o demônio O levou ao ponto mais alto
para tentá-Lo.
Pela manhã, os alforjes foram guarnecidos... Assim o sustento dos
romeiros pôde ser garantido na continuação da travessia da vasta planície. No
caminho, Topsius explicou que, no passado, a região abrigara movimentadas
cidades que se comunicavam por caminhos repletos de vinhedos. As famílias que
as ocupavam tinham todas as possibilidades de tirar seu sustento da terra e
produzindo bons vinhos.
Teodorico
entendeu que aquela atmosfera já havia sido muito melhor, marcada pelo aroma de
incensos e perfume de flores. Caravanas que chegavam à localidade passando por
Ségor (ou Segor; a cidade é descrita em Gênesis) comparavam o vale ao Egito, reconhecido
pela abundância proporcionada pelo Nilo, e diziam que aquele só podia ser o “verdadeiro
pomar” do Senhor.
Mas então, o que explicaria a transformação do lugar?
Topsius ouviu a pergunta do companheiro
português e sorriu sem esconder seu sarcasmo. Respondeu que o Altíssimo se
aborreceu e por birra “arrasou tudo”... Manifestou Sua ferocidade e mau-humor.
(...)
Logo avistaram o Mar
Morto. Via-se as suas águas faiscantes e estagnadas se estenderem “até as
montanhas de Moabe”.
Uma
visão aterrorizante e triste também por se saber que toda aquela região parecia ainda padecer da
cólera divina. Nada de vilas cheias de vida (como a Cascais citada pelo memorialista)...
Nada de barracas de pescadores, regatas ou pescarias... Nada de jovens mulheres
a se entreterem na coleta de “conchinhas na areia”... Nada de festivos
encontros noturnos à luz de lampiões e ao som de rabecas.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/11/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_64.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto