Teodorico registrou um pouco mais sobre a casa de Gamaliel...
Uma sólida peça em bronze se destacava na sala. Era um incensador que queimava uma resina especial e exalava um perfume diferenciado na atmosfera.
O teto era todo em cedro com vários detalhes arrematados em tom avermelhado. O azul das paredes dava a impressão de continuar o céu do oriente captado pela abertura das janelas... Também chamava a atenção um ramo de madressilva que descia harmoniosamente do trecho do muro que se podia avistar.
(...)
O
anfitrião notou as botas dos recém-chegados... Disse que a jornada que tinham
realizado desde o Jordão era longa e certamente estavam com muita fome. Diante
de tamanha gentileza, Teodorico sentiu-se acanhado e com polidez deu a entender
que estavam satisfeitos...
No mesmo instante,
Gamaliel disse que “a hora do meio-dia é a mais grata ao Senhor”... Depois,
como se estivesse a recitar, emendou que José (do Egito) dissera ao seu irmão
Benjamim (Bíblia; filhos de Jacó e Raquel) que ao meio-dia comeriam juntos. Por
fim disse que a alegria do hóspede agrada ao “muito alto e forte”, sendo assim
era preciso que se alimentassem para que ele fosse abençoado.
Gamaliel
bateu palmas e logo um de seus servos se aproximou com um jarro que continha
água cheirando a rosas. Teodorico purificou as mãos. Logo depois outros criados
serviram-lhe bolos de mel e vinho de Emaús.
Gamaliel fez
companhia ao estrangeiro... Serviu-se de um gomo de romã e bebeu de uma tigela
onde se notavam flores de laranjeira e gelo. Como que a agradecer, Teodorico
sentenciou que fora bem servido e, assim sendo, chegaria “lastreado” ao
meio-dia. Acrescentou que seguramente a alma do anfitrião se regozijaria.
(...)
Depois Teodorico
sentiu-se à vontade para acender um cigarro e acomodar-se à janela.
De onde estava, pôde
notar que a casa fora construída numa elevação, a colina de Orfel... Concluiu
que o ambiente estava atrás do templo... A atmosfera local era das melhores. A
doçura do ar enchia os corações de paz. Observando o terreno em delicado
aclive, via-se a muralha construída a mando de Herodes, o Grande. Depois eram
os jardins e pomares no Vale da Fonte.
Dali avistava-se a colina onde localizava-se a aldeia de Siloé... Entre
o Monte do Escândalo e a Colina dos Túmulos via-se os reflexos do Mar Morto...
Depois eram a montanhas de Moabe. Teodorico calculou que aquelas eram as
distantes paragens da Idumeia e seus rochedos... Sobre um deles estava
Maqueros, a famosa cidadela.
(...)
Mesmo de longe, Teodorico conseguiu notar que no terraço de uma casa das
imediações alguém se protegia sob um guarda-sol enquanto também contemplava a
paisagem montanhosa.
Ao lado estava uma jovem que se distraía com
várias pombas... Ela trajava uma túnica que se abria na altura do peito. O
Raposo não deixou de admirá-la e imaginar a doçura de sua pele morena... Por um
instante pensou que devia transmitir-lhe um beijo no silêncio da atmosfera.
O português
concentrava-se nesses descompromissados pensamentos quando ouviu que Gamaliel
repercutia o assunto que havia levado Topsius à sua casa...
Em síntese, ele confirmou que o Rabi Jeschoua havia sido preso na noite
anterior em Betânia, e acrescentou que certo Pôncio havia sido escrupuloso ao
não dar sequência a qualquer julgamento.
Gamaliel
tinha a explicação e seguiu dizendo que este Pôncio achou mais prudente não
tomar a frente de Herodes Antipas, já que o preso era da Galileia e súdito do
tetrarca.
Como Herodes visitava
Jerusalém à época da Páscoa, o prisioneiro foi encaminhado à sua residência em
Bezeta. Topsius ouviu essas primeiras considerações do anfitrião e disse que
estranhava o escrúpulo de Pôncio... Depois quis saber desde quando ele passara
a respeitar a “judicatura de Herodes”.
O que mais intrigava
o alemão era o fato de saber que inúmeros galileus haviam sido mortos durante
certa “revolta do aqueduto” por ordem deste Pôncio... O sangue daqueles pobres
homens se misturaram ao de animais sacrificados no templo.
Gamaliel sugeriu que,
de fato, aquele romano era cruel, mas colocava a legalidade acima disso. Nesse
momento, Osânias se intrometeu dizendo que talvez a esposa de Pôncio fosse
protetora do Rabi feito prisioneiro.
A fisionomia de
Topsius não escondia a interrogação... Gamaliel conhecia bem a conversa que se
espalhava desde o templo até os humildes pastores que chegavam de Idumeia. Por
isso fez uma aparência de desaprovação ao mesmo tempo em que estranhou que o
sábio amigo alemão desconhecesse o fato de Cláudia (esposa de Pôncio) sentir-se
atraída pelo Rabi... Sempre que Ele fazia pregações na área da Porta de Susa, no
Pórtico de Salomão, ela se posicionava num dos terraços da Torre Antônia só para
observá-Lo.
Osânias
acrescentou que certo Menahem, militar que cuidava da escadaria dos Gentis nos
idos do mês de Tebete (Tevet), contou que a vira acenar o seu véu negro ao Rabi
algumas vezes. Conhecida por suas aventuras com cocheiros e variados artistas,
talvez se interessasse de modo especial pelo profeta que vinha da Galileia.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/12/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_12.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto