Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_25.html
antes de ler esta postagem:
O moleiro entregou
sua carta e os juízes se reuniram imediatamente para definir a sentença...
Fizeram o réu reconhecer as contradições em que havia caído; desistiram de
tentar convencê-lo sobre o “caminho certo”, e resolveram que ele deveria
discorrer ainda sobre mais algumas questões como forma de montar o “quadro
completo de suas aberrações”... Por unanimidade decidiram a sentença afirmando
que Menocchio, além de herético formal, era um heresiarca (fundador de seita
herética)... A sentença, promulgada a 17 de maio, foi muito maior do que as
sentenças comuns de até então.
O Queijo e os Vermes cita vários trechos
complicados contidos no documento elaborado pelo tribunal... Os termos em latim
imputavam ao réu a condenação por ter falado sobre suas opiniões heréticas
contra a fé católica, com o agravante de não ter se manifestado apenas aos
religiosos, mas também às pessoas simples (non
tantum cum religiosis viris, sede etian cum simplicibus et idiotis)... A
sentença justificava que Menocchio era perigoso e, assim sendo, devia ser excluído
da convivência dos camponeses e artesãos de Montereale...
Ginzburg reproduziu boa
parte da exemplar sentença. Ela é tão significativa que perderíamos muito em
não apresentar trechos selecionados. Os juízes expressaram toda a sua aversão às
ideias e ousadia do moleiro, que só podiam ser obra de associação ao maligno:
(...) de tal forma
obstinado nessas heresias; permaneceste com a alma insensível; negavas com
atrevimento, ofendeste com palavras profanas e nefandas; afirmaste com espírito
diabólico; não poupaste os santos jejuns; por acaso não vimos que ladraste
também contra as santas palavras?; condenaste com teu julgamento profano; foi
por influência do espírito maligno que ousaste afirmar; enfim tentaste com tua
boca imunda; imaginaste essa coisa totalmente abominável; e para que nada
permanecesse imaculado e que não fosse por ti contaminado (...) negavas;
adulterando com tua língua maldita (...) dizias; enfim latias; colocaste o
veneno; e o que é terrível que não só se diga mas se ouça; teu espírito mau e
perverso não se contentou com essas coisas todas (...) mas levantou os seus cornos
e, como os gigantes, te puseste a lutar contra a inefável Santíssima Trindade;
o céu se espanta, tudo se conturba e estremecem os que ouvem as coisas tão
desumanas e horríveis que com tua voz profana falaste de Jesus Cristo, filho de
Deus.
O trecho da sentença apresenta as duras críticas contra Menocchio.
Entretanto podemos dizer que há exagero em relação ao juízo de que as heresias
por ele praticadas fossem “inéditas” para os inquisidores… Eles estavam
acostumados a tratar dos mais diversos processos na região do Friuli contra
luteranos, bruxas, benandanti, blasfemadores, anabatistas… As convicções
do réu sobre as confissões diretas a Deus eram conhecidas dos seguidores da
Reforma; as autoridades relacionaram a citação de Menocchio sobre o caos às
ideias de “um antigo filósofo, não nomeado”; à máxima de Menocchio sobre Deus
ser autor do Bem e de tudo o que é bom (e o diabo autor do mal), os
inquisidores justificaram que ele retomava os princípios dos maniqueus; em
relação à sua opinião de que todos se salvam (cristãos, judeus, turcos…), os
religiosos afirmaram que o moleiro resgatava a heresia de Orígenes…
De modo implacável, o registro esmagava as esperanças de Menocchio em
uma misericordiosa absolvição: “o que todos admitem e ninguém ousa negar, tu, a
exemplo do tolo, ousaste dizer: ‘Deus não existe’ (…)”.
Ginzburg ressalta que algumas referências sobre as ideias dos maniqueus
e de Orígenes podem ter sido lidas por Menocchio no Supplementum supplementi
delle croniche (de Foresti), mas adverte que os religiosos exageraram ao
considerar que aquelas doutrinas e fundamentos embasaram suas convicções…
Mais uma vez o autor destaca o “fosso” que separava a
cultura do acusado da das autoridades…
Ao final vemos Menocchio condenado a abjurar em
público a todas as suas ideias heréticas… Isso era fundamental para o seu
“retorno à Igreja”, mas, além disso, teria de cumprir penitência encarcerado,
usar um hábito marcado com a cruz “pelo resto da vida”… Sobreviveria às custas
dos esforços de seus filhos.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_5031.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto