O “desabafo” de Kapuscinski revela-nos um pouco das dificuldades do ofício do correspondente europeu nas terras africanas durante os anos 1960...
O padrão de trabalho por ele estabelecido era de muita ação: “cobrir todos os acontecimentos importantes numa área de trinta milhões de quilômetros quadrados”...
Para Kapuscinski, não bastava o jornalista realizar reportagens que revelassem a “situação de momento” dos países politicamente agitados... Mais que isso, era necessário levantar dados a respeito do passado de cada um dos “50 países”, “conhecer pelo menos metade das duas mil tribos” do continente e ter domínio sobre detalhes importantes a respeito dos modos mais seguros e eficientes de se locomover de uma parte a outra, quer por terra, em meio à floresta, ou pelos rios caudalosos.
(...)
Há cinquenta anos, o telex e o telegrama eram os meios
mais rápidos de se encaminhar as produções textuais para as agências de
notícias... Dessa maneira, além de produzir muito material, o bom repórter não
podia medir esforços para acompanhar de perto os acontecimentos, mesmo nas
situações de maior perigo, e, depois de redigir seu texto, dirigir-se aos
postos de correios ou prédios governamentais para encaminhar o seu conteúdo...
A rigorosa disciplina (em outro sentido ele também era indisciplinado) a
que Kapuscinski se submetia exigia que ele se instalasse nos países em momentos
precisos... De que adiantaria chegar ao local depois que o “Golpe de Estado
acabara de terminar?”... Em vez de viajar “de um hospital para outro”, o bom
jornalista escolhia seguir “de um front para outro”.
Para ele, não havia nenhum problema em cumprir a
profissão de modo perigos e em alto risco... Em sua opinião, para realizar o
trabalho, o jornalista não podia sentir medo de “moscas tsé-tsé, cobras negras,
elefantes e canibais”.
O bom profissional não se importava de beber água de rios e riachos, ou
se alimentar de pratos a base de formigas assadas... As possibilidades de danos
eram muitas e, no exercício do jornalismo “à moda Kapuscinski”, jamais se
podiam descartar infecções por bactérias, doenças venéreas...
Ainda de acordo com o autor polonês, os jornalistas que estivessem mais
interessados em acumular dinheiro para adquirir propriedades em seu país de
origem, que não se adaptassem às precárias instalações nas pobres choupanas, ou
ainda os que alimentassem desprezo pelos africanos e o destino de suas pobres
sociedades, não teriam condições de trabalhar como correspondentes na África.
(...)
Há que se considerar que um dos critérios usados na avaliação dos
repórteres era o volume de material que eles produziam... Quanto mais as pastas
nas agências estivessem repletas de produções textuais, melhor era o conceito
que se fazia do profissional.
Kapuscinski escreveu muito a respeito da África e sobre os movimentos
políticos que agitavam as nações que haviam se tornado independentes depois de
longos anos de dominação europeia...
Ele mesmo admite que,
muitas vezes, “escreveu sem pensar”... E que grande parte do que escreveu acabou
se perdendo.
Embora tivesse um superior,
redator-chefe na PAP (Agência Polonesa de Notícias), notamos que ele trabalhava
com “excessiva autonomia” e seu compromisso era apenas com sua autonomia... Por
conta própria, Kapuscinski “marcava presença nos cenários mais complexos”.
Sua independência era
tolerada... Mas quando ela tomava ares de indisciplina causava muita dor de
cabeça ao pessoal da PAP.
(...)
Para termos uma ideia, a série de textos sobre
os confrontos na Nigéria recebeu o título de “Barreiras em chamas”... Depois de
recebê-la em Varsóvia, o redator-chefe Michal Hofman não pôde conter sua
irritação e telegrafou imediatamente para Kapuscinski... Chamou-lhe a atenção
para que não se evolvesse mais (de uma vez por todas) em “empreitadas” que
pudessem terminar em tragédia.
Leia: A
Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto