Na região de exploração de pedras preciosas, e certamente em várias partes do Brasil de fins do século XIX, havia quem acreditasse que o canto do galo em determinados momentos do dia fosse prenúncio de que algo (bom, ruim ou escandaloso) estava para ocorrer.
(...)
Entendia-se que o cantar do galo, além de anunciar as horas,
“denunciava”...
Todos conheciam bem o
episódio sempre lembrado na Semana Santa em que, depois de Jesus ter sido
entregue aos seus algozes, por três vezes o apóstolo Pedro o renegou. Isso ocorreu antes do cantar do galo, como
havia sido antecipado ao apóstolo pelo próprio Jesus.
Ao ouvir o galo, Pedro sentiu-se envergonhado. Amava o mestre, mas sua
própria fraqueza o levara a renegá-lo.
(...)
Em Diamantina, as pessoas levavam a sério o canto do galo e acreditavam
que o cacarejar específico do “despertar da aurora” jamais falhava.
Até hoje há os que garantem que podem informar as
horas da alta madrugada porque sabem ouvir os galos e outros bichos da noite.
Não se pode desprezar o conhecimento que emerge do cotidiano da gente
simples. Evidentemente é daí que desponta a riqueza de nosso folclore.
(...)
Em seus escritos de 5 de novembro de 1893, Helena explica que muita
gente já não dava crédito aos dizeres populares a respeito do canto do galo.
Dizia-se por exemplo que quando a ave cantava às nove horas era sinal de que
alguma moça estava fugindo de casa para se casar.
Ela desconfiava... Sempre ouvia o galo cantar às nove, mas ninguém dava
notícias de moças fugindo do convívio dos familiares.
Helena garantia que quando morava na Boa Vista, as pessoas olhavam para
o céu, verificavam a posição do sol e informavam as horas. Muitas vezes, depois
de ouvir os mineiros mais simples das lavras, ela confirmava a informação em “relógios
de verdade”. Ficava encantada ao saber que eles tinham razão.
É por isso que em seus tempos
de infância acreditava em ”hora do galo”. Assim como o sol marcava as horas do
dia, o galo marcava as horas da noite.
(...)
Todavia, aos treze anos, ela
começava a entender que era perigoso tomar o canto do galo como referência para
certos compromissos do dia-a-dia. As pessoas podiam ser levadas a cometer
enganos desagradáveis.
Foi o que ocorreu
naquele domingo...
Dona Carolina acordava as filhas um pouco antes das quatro da manhã
(isso mesmo) para se encaminharem à missa da madrugada. Na ocasião, Helena protestou
ao dizer que não era possível que já fossem quatro horas, pois sentia que fazia
pouco tempo que estava dormindo.
A mãe insistiu e explicou
que ela podia dormir após a missa porque o galo já havia cantado duas vezes. Estavam
mesmo no horário! Então o único remédio era desafiar a sonolência e se preparar
para a celebração.
Helena obedeceu, lavou o rosto e se arrumou. O café já
estava coado. Logo saíram.
No caminho, ela observou a rua deserta, olhou a lua e as estrelas.
Observou que talvez o galo tivesse “errado a hora dessa vez”. Dona Carolina não
lhe deu ouvidos e seguiu conduzindo as duas filhas, cada uma por um braço.
Ao passarem pelo quartel, o soldado quis saber o que a
mulher fazia com as duas meninas àquela hora na rua. Dona Carolina respondeu
que iam à missa da igreja da Sé. Então o moço respondeu que ainda era
meia-noite e pelo que sabia não era véspera de Natal.
(...)
O soldado falou rispidamente e isso deixou Helena assustada.
Dona Carolina mostrou-se admirada com a informação e disse que pensava
que fossem quatro horas. Agradeceu e puxou as meninas de volta para casa.
As três deitaram-se vestidas como haviam saído. Dormiram novamente e
perderam a hora da missa.
Chegaram à igreja quando o “Padre Neves já
estava nas ave-marias”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/04/minha-vida-de-menina-de-helena-morley.html
Leia: Minha
Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto